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A Casa Aroeira

  • Foto do escritor: Cláudia Goulart Alves de Mello
    Cláudia Goulart Alves de Mello
  • 25 de nov. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 10 de dez. de 2024

Nós sempre moramos em apartamentos. Fui educada “pensando” ser mais prático e de fácil manutenção – era tudo o que precisávamos! Vivemos em apartamentos grandes e confortáveis, e até num bem pequeno, quando passamos dois anos fora de Brasília.

 

Em 2005, sofri um motim, (um belo dia) fui acordada por marido e filha me comunicando a decisão de que iríamos nos mudar para uma casa. É claro que eu resisti, mas fui vencida... e convencida (os ventos sopraram e a roda girou).

 

A casa para a qual nos mudamos nos ajudou a realizar sonhos (resgatar vários cães e gatos, por exemplo), além de alguns confortos na área externa, como jardim, piscina grande, sauna e espaço de lazer. E, ao contrário do que se diz (ou do que quem tem diz), nós aproveitamos muito: usávamos tudo!

 

Recentemente, num curto intervalo de tempo, perdemos duas mães, dois filhos e alguns cães e gatos. Depois de quase 19 anos, nós nos mudamos outra vez.

 

Parecia impossível achar outro lugar para viver, mas a casa antiga era inviável, por muitas razões. Meio sem procurar, demos de cara com essa casa rural, próxima ao Parque Ecológico do Tororó. Ela tinha uma enorme aroeira-pimenteira no meio do jardim da frente e algo em mim disse baixinho: “é essa”.


 

A casa era maior do que pretendíamos, mas as únicas duas que nos interessaram tinham combinações inversas. Uma era pequenina (perfeita para um casal de idosos), mas sem área externa suficiente para o conforto dos cães e gatos; e a outra era grande, mas a área externa era perfeita para as crianças. E foi isso que nos fez escolhe-la.

 

Estávamos mortificados de dor, tristeza, estresse, problemas, cansaço. Mas tudo o que se referia à casa dava certo, funcionava, foi de fato surpreendente. Nós nos mudamos em fevereiro, portanto, há 9 meses: estamos aqui pelo tempo de uma gestação, esperando o nascer de algo que ainda não sabemos o que será. Esses meses voaram, mas também se parecem com o passar de muitos anos: o tempo alternou seus humores. Tudo se desenrolou no ritmo da vida, com sofrimento, pequenas alegrias e alguma paz.

 

Nossos bichos se espalharam, encontraram aqui o conforto e a integração que jamais haviam tido na casa anterior, ainda que fosse tão maior que esta. Agora, cães e gatos transitam juntos, em todas as atividades, não existe área restrita, tudo é livre.

 

Quando chegamos, o local já estava cercado por ninhos de passarinho. Colocamos mais “casinhas”, bebedouros para beija-flor, novas plantas no jardim, ervas para dar sorte. Prismas, sinos-de-vento, tudo se ajeitou.

 

Plantei um ipê amarelo, lavanda francesa e uma roseira. Coloquei um banco sob o ipê. Ele floriu bem antes do tempo (regado a amor e lágrimas).


 

Nós nos livramos de dois terços (ou mais) do que tínhamos. Só de livros, nos desfizemos de uns dois mil volumes. Hoje, as coisas estão em uso e poucos itens nos armários (tudo está mais leve), foi uma limpeza e tanto, mas sinto que ainda podemos reduzir bastante… (é algo que pretendo continuar fazendo).

 

Itens organizados, documentos ordenados, muitos papéis queimados, muita coisa transformada, muita energia transmutada (e já estávamos prontos para enfrentar novos problemas).

 

Compreendi que o exercício do desapego tem muitas camadas. Depois das coisas materiais, é preciso se desapegar das lembranças, das ideias, das identidades que construímos em torno de nós e que nada mais fazem do que reforçar o ego. Trabalho árduo. É muito mais difícil abrir mão de uma história do que de uma joia!

 

A faxina eletrônica, então, que tarefa hercúlea! Um trabalho sem fim... Faço sistematicamente, há mais de um ano, e estou longe de terminar: computadores, HDs, drives externos, nuvem, aparelhos celulares, redes sociais, páginas profissionais, portfólios, textos, papers, artigos, currículos, memórias, imagens, FOTOGRAFIAS... Tudo com poderes tentaculares, infiltrados por toda parte. E, a gente sempre pensa, “pode ser que eu precise disso um dia”... Ledo engano.

 

Lá pelas tantas, percebi que havia uma verdadeira teia de informações e energia que me conectava e prendia a tudo, e que eu mesma a havia criado e alimentado. Pensei em pessoas que conheci e que tiveram mortes difíceis, apegadas, sem se libertar. Sobre algumas, lembro de ter-me perguntado o porquê da pessoa ainda estar ali, se era tão desapegada das coisas materiais... Por que não morria logo, por que não se deixava ir?

 

Só recentemente, eu me dei conta de que a imagem que fazemos de nós mesmos (junto aos demais artifícios e mecanismos do ego) nos prende mais a este plano do que qualquer bem material. Ficamos presos a ideias, crenças, pensamentos, memórias, emoções... e tudo mais que faz parte dessa arquitetura, elaborada e meticulosa, que construímos e rebuscamos ao longo da vida.

 

Não percebemos a construção (na maior parte do tempo é inconsciente), mas mesmo aquilo que está nas esferas mais conscientes produz resultados que têm alcance e força desconhecidos por nós.

 

Construímos tudo distraídos, enquanto vivemos. Mas, desmanchar, é outra conversa. Como é difícil desfazer essa teia! Ela não pode simplesmente ser rompida e descartada, é preciso trabalho para dissolver, transformar, transcender. Temos que desatar nós, desembaraçar caminhos, soltar fios. Ah, se eu soubesse, quanta coisa eu teria evitado... (e poderia começar evitando esse inútil lamento da vida, por exemplo, né? Totalmente desnecessário...).

 

Não sei se terei tempo suficiente para me livrar de tudo, é muito provável que a morte chegue antes e eu tenha que partir (do jeito que der), com todo esse lixo junto. Mas, agora que enxerguei o troço, vou me esforçar para reduzir os danos. Não tem outro jeito, é sem anestesia que as coisas funcionam melhor, a saída é enfrentar (até porque, fugir e me anestesiar eu já tentei, por anos a fio, e é péssimo negócio!).

 

A nossa casa nova era a sede de uma chácara que se transformou em condomínio. Quando nos mudamos, não tínhamos vizinhos, éramos apenas nós e todo esse mato em volta. Agora, já temos dois (com suas casas quase prontas), que devem se mudar nos próximos meses. Os outros terrenos também já foram quase todos vendidos.

 

Alguns amigos mais urbanos ficaram apreensivos quando viemos para cá, afinal de contas eram dois velhos no meio do mato! Mas, pasmem, nunca senti medo nesta casa! Nem sozinha nem no escuro nem na tempestade. Sempre estive tranquila aqui, como se os maiores perigos estivessem além do muro (o que não é verdade, porque estes moram na gente, não é mesmo? Em todo caso, eu me sinto assim).

 

Nesses quase mil metros de terra em que habitamos, há muita vida. Vagalumes! Cinco espécies de abelhas! Todo tipo de inseto... Aqui, nesses poucos meses, já nasceram bem-te-vis, sabiás, canários, pardais, azulões e pintassilgos. Somos visitados por corujas, periquitos, papagaios, tucanos, macacos, colibris e várias espécies de lagartos. A terra é boa, nasce de tudo, cogumelos brotam por todos os cantos!

 

Às vezes, eu me sinto como um passarinho de asa quebrada, que alguém colocou numa caixinha de sapato, com uns paninhos muito aconchegantes, para descansar e se curar.

 

Não me entendam mal, não é um reino encantado fora da vida, aqui também há dor, doença e morte. Passarinhos e lagartos perderam suas breves vidas para gatos e cachorros, mas o placar ainda é favorável à vida, acho que está em algo como três mortes a incontáveis vitórias.

 

Também temos fantasmas (muitos!), todos pacíficos, mas presentes. Fenômenos estranhos: eu vi o céu ficar cor-de-rosa e lilás em segundos, cores fortes, intensas e repentinas... Assim como tudo se coloriu, também se dissolveu, e eu não sei explicar.

 

É a casa dos arco-íris e das luzes estranhas. Há uma luz fora do mundo, nesta casa! Esse brilho cintilante aparece em fotos e está presente até quando a iluminação é pouca. Mistérios...

 

Vimos tempestades e incêndios, tudo com a mesma magia do fogo na lareira ou no braseiro, queimando miasmas e formas-pensamento, tornando as energias mais sutis.

 

Cuidamos da casa, dos animais, do jardim, do lixo. Limpamos, arrumamos, consertamos, damos conta de quase tudo. O que também é impressionante, e libertador.

 

Nesta casa (depois de meses), voltamos a ouvir música. Temos música em nossas vidas, todos os dias. Ainda não voltei a dançar, mas tenho esperanças... (risos)... Aqui, também voltei a meditar (prática, rotina, disciplina).

 

Li em algum lugar que o lar é uma entidade psíquica e que, por isso, sempre deve ter um nome, daí a batizamos de “Casa Aroeira”. Um amigo nosso (muito bruxo), quando veio aqui pela primeira vez, entrou, olhou em volta, constatou a aroeira e disse de cara: essa árvore é a guardiã da casa! E era verdade. Ela é a própria “Mãe-Terra abrigando a vida”, um sistema imenso, com aves, insetos, cigarras, abelhas, vespas, formigas, líquens e milhões de pequenos seres que vivem dela. E, como se não bastasse, esse ser magnífico ainda nos dá (e aos passarinhos) um suprimento gigantesco de pimenta-rosa! Não podia ser melhor...



Soubemos que, antes de existir o condomínio, nossa casa era utilizada pela Polícia Federal, como local de proteção à testemunha. Fiquei preocupada com as possíveis “energias remanescentes”, mas que nada! Tudo em paz.

 

Quando nos mudamos, a área externa ainda não estava pronta, o construtor levou dois meses finalizando tudo. Era um tal de chegar madeira de ipê, telhas coloniais... e nós fomos investigar, era um material caro, que só poderia estar vindo de alguma demolição. Pois bem, descobrimos que vinha de uma casa espírita que havíamos frequentado, há mais de 30 anos atrás. O madeiramento e as telhas que nos abrigavam eram o teto do centro espírita, como se fosse uma bênção sobre nós. Faz a gente refletir, né?

 

Tudo o que pode haver num lugar para ajudar nossos processos de cura e de luto existe nesta casa. A mim compete prosseguir na tarefa de “me arrumar para morrer”, organizar a vida para aprender tudo o que for possível, até o último instante, procurando não deixar muita bagunça para o próximo que vier.

 

Viver bem é estar pronto para morrer a qualquer instante, isso parece óbvio, mas não é fácil de se fazer, requer trabalho e atenção, é preciso superar a preguiça. A mim me parece essencial, eu me sinto compelida a esse caminho, sem certezas, apenas investigando (com honestidade), um passo por vez. Gostaria muito de estar pronta, de construir (conscientemente) esse desfecho.

 

A casa, o lar, a lareira são todos “o fogo” em torno do qual refinamos os nossos espíritos. Enfrentamos a vida e trazemos para dentro de casa as dores, os temores, as experiências, os problemas. É em casa, que temos refúgio para refletir, meditar, resolver, decidir, compreender, amadurecer e nos fortalecer (para avançar). Portanto, nossa casa é um espaço sagrado de proteção e cura, aonde tomamos fôlego para seguir em frente, e a “Casa Aroeira”, certamente, está sendo a nossa fortaleza para o entardecer.

 

É isso, nós vamos seguindo, dia após dia, curando um pouco aqui... um pouco ali, sempre esperançosos de (em algum momento) estarmos restaurados o suficiente para voltar a tomar chá com os amigos (aqui), na “Casa Aroeira”, cenário de acolhimento para esse nosso trajeto entre vida e morte, e laboratório perfeito para o aprendizado diário do viver.



"Portas e janelas ficam sempre abertas,

para a sorte entrar!"










































































1 Comment

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contato.eulaliasombra
Nov 26, 2024
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Eu te vejo…

E te amo!!!

Você é uma longa história de vida e que não é qualquer história.

❤️

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